Qual potencial de crescimento o português do Brasil tem em Portugal, para além de manchetes sensacionalistas e relatos anti-imigração?
No início de fevereiro, um post feito por um perfil brasileiro de combate à xenofobia no Y (antiga rede social) revelou a presença de um cartaz de sinalização escrito em ‘idioma brasileiro’ em São Paulo, na região metropolitana de São Paulo.
A publicação gerou polêmica entre os usuários, que discutiram sobre as diferenças na variante do idioma usada no Brasil. Alguns defendiam a padronização do português, enquanto outros destacavam a riqueza cultural das diversas formas de falar a língua. Independente disso, a questão levantou um debate importante sobre a diversidade linguística no país.
Impacto do português do Brasil em Portugal
‘Sinal rodoviário escrito em português brasileiro diz que é proibida a circulação excepto a ‘trens’ e bicicletas’, diz a postagem, que traz também uma foto da placa que supostamente ‘assassina a língua de Camões que é o português europeu’.
O grande problema, segundo o autor do post, é que a palavra ‘trens’ teria sido retirada do português usado no Brasil, já que em Portugal o meio de transporte ferroviário é chamado de ‘comboio’. O fato, porém, é que a palavra ‘trem’ existe também no português europeu, mas com um significado distinto.
Em Portugal, pode ser ‘um carro de cavalos destinado ao transporte de pessoas’, ou uma carruagem, de acordo com a definição do dicionário da Porto Editora. Levando em conta a localização da placa, a palavra ‘trens’ se refere às carruagens puxadas por cavalos que fazem passeios com turistas por Sintra.
Rejeição de vocabulários e construções brasileiras
O episódio faz eco a muitos outros casos de portugueses ‘puristas’ que cada vez mais rejeitam a presença de vocabulários e construções brasileiras na língua falada em seu país.
Esse repúdio fica claro em muitas das reações às notícias e manchetes de jornal que denunciam há alguns anos a influência dos conteúdos produzidos por brasileiros nas redes sociais e no YouTube nas crianças e jovens portugueses.
Enquanto alguns veem a cobertura da imprensa como exagerada e apontam o peso da xenofobia nas visões propagadas, outros fazem coro às queixas e temem que a presença cada vez maior dos vocábulos importados seja sinal de um ‘apagamento’ da cultura local.
Há ainda quem aponte o grande e crescente fluxo migratório — havia 360 mil brasileiros em Portugal em 2022, segundo o Itamaraty — como outro fator que contribui para isso. Mas por que a possibilidade da variante usada no Brasil ser encontrada em Portugal provoca tanta indignação entre alguns cidadãos? E qual a verdadeira extensão dessa influência?
Presença de youtubers brasileiros em Portugal
Para Fernando Venâncio, linguista português que estuda o tema há décadas, há sim uma presença cada vez maior de traços importados do outro lado do Atlântico no idioma falado em terras portuguesas. Mas isso não é novidade.
‘Desde finais dos anos 1970 e princípios dos anos 1980, houve uma aquisição de brasileirismos gigantesca’, diz Venâncio, autor do livro O Português à Descoberta do Brasileiro.
Na época, isso foi um reflexo principalmente do sucesso das novelas brasileiras em Portugal, explica o linguista.
Agora, há um fenômeno novo em curso, que envolve principalmente as crianças e adolescentes. ‘Em Portugal, eles veem cada vez mais youtubers brasileiros, às vezes, por muitas horas’, diz Venâncio.
Influência dos youtubers brasileiros em Portugal
A portuguesa Paula Lourenço é professora de escolas de ensino fundamental em Sintra há 24 anos.
Ela dá aulas para crianças entre 9 e 10 anos e diz que o uso de expressões e palavras brasileiras pelos seus alunos é cada vez mais evidente.
‘Neste momento, na escola, tenho um caso de um aluno que fala ‘brasileiro’ apesar de os pais serem portugueses’, conta.
A professora relata que esse aluno começou a ser vítima de uma espécie de bullying, com colegas implicando com a forma como ele fala.
‘Por fim, descobrimos que ele ficava até altas horas da noite sem supervisão a ver vídeos, principalmente aqueles shorts [vídeos curtos] que são reproduzidos um atrás do outro.’ Segundo Paula, o gosto pelos vídeos produzidos por influenciadores e youtubers do Brasil é compartilhado por praticamente todos os seus alunos. ‘Houve um boom principalmente durante a pandemia.
Até eu já estou um pouco aficionada pelos youtubers brasileiros, porque comecei a ver para acompanhar o que meus alunos gostam’, diz a professora. Mesmo nas aulas de inglês, a professora Teresa de Gruyter nota a repetição dos ‘brasileirismos’. ‘Usamos muito a palavra ‘giro’ em Portugal quando queremos falar de uma coisa que achamos engraçada ou interessante. Mas quase não ouço mais.
Hoje em dia, utiliza-se mais ‘é bonitinho’, que é muito mais brasileiro’, conta a portuguesa, que dá aulas principalmente para adolescentes em uma escola de línguas em Cascais. Teresa nasceu em Portugal e se mudou para a África do Sul na década de 1990.
Influência do português do Brasil em Portugal
‘Quando saí do país há 25 anos, estávamos muitos expostos ao português brasileiro através das telenovelas e das músicas’, diz.
‘Mas, desde a minha volta há menos de 10 anos, começo a notar que todo este mundo dos youtubers e tiktokers [produtores de conteúdo da rede social TikTok] influenciam muito mais a maneira de estar e a maneira de falar das crianças no geral.’ Graça Rio-Torto, professora de Linguística da Universidade de Coimbra, vê, no entanto, as novas construções e palavras aprendidas pelas crianças e jovens portugueses como aprendizados positivos.
‘Essas palavras novas enriquecem o léxico dessas crianças e não há mal nenhum nisso’, diz ela.
‘Mas se os pais portugueses têm preocupação com o fato dos seus filhos estarem a falar mais abrasileirado, lamento. Mas os responsáveis são eles.
Não é tanto o contato com colegas brasileiros na escola que fazem com que elas falem assim, mas o número de horas que os pais permitem que elas fiquem na internet.’ A professora Paula Lourenço concorda: ‘Essa influência é boa pelos conhecimentos que transmite na área no enriquecimento do vocabulário, da globalização e de conhecer outras culturas’.
‘O problema são os casos extremos em que já não sabem utilizar as expressões corretas nem no português do Brasil, nem de Portugal’, afirma Lourenço. Para a professora, são o uso excessivo de telas sem supervisão e o isolamento das crianças e adolescentes que prejudicam o aprendizado e a compreensão de textos.
Venâncio diz que o fato de jovens portugueses usarem expressões brasileiras não deveria ser motivo de alarde.
‘As crianças deixam sair uma ou outra palavra que ouviram no YouTube, mas é exagero dizer que passaram a falar ‘brasileiro’.’
‘Uma deturpação do português’Entre os destaques do YouTube que servem de referência para o sucesso brasileiro em Portugal estão os canais dos irmãos Felipe e Luccas Neto, com respectivamente 46 e 42 milhões de inscritos.
Ao mesmo tempo, o canal de humor Porta dos Fundos atrai o público adulto português há alguns anos.
Para a linguista brasileira Jana Behling, doutoranda na Universidade de Coimbra que estuda o tema, o ‘impacto do brasileiro’ também pode ser notado por meio da popularidade de cantores como Marília Mendonça e até da literatura produzida por autores contemporâneos, de Itamar Vieira Júnior a livros com conteúdo religioso.
‘Coimbra é sempre mais conservadora, mas ainda assim desfila o ‘brasileiro’ no Poetry SLAM, que é uma competição em que poetas leem ou recitam um trabalho original’, ressalta. Esse sucesso não acontece sem conflitos.
Apesar dos consecutivos shows esgotados em Portugal, Luccas Neto já foi repudiado por popularizar na fala portuguesa palavras brasileiras, como ‘geladeira’ no lugar de ‘frigorífico’, ‘ônibus’ no lugar de ‘autocarro’ e assim por diante. ‘Alguns portugueses enxergam essa popularidade como se emporcalhasse a língua europeia’, avalia Behling.
Essa influência é boa pelos conhecimentos que transmite na área no enriquecimento do vocabulário, da globalização e de conhecer outras culturas’
Há ainda quem aponte o grande e crescente fluxo migratório — havia 360 mil brasileiros em Portugal em 2022, segundo o Itamaraty — como outro fator que contribui para isso. Mas por que a possibilidade da variante usada no Brasil ser encontrada em Portugal provoca tanta indignação entre alguns cidadãos? E qual a verdadeira extensão dessa influência?
Presença de influenciadores brasileiros em Portugal
Para Fernando Venâncio, linguista português que estuda o tema há décadas, há sim uma presença cada vez maior de traços importados do outro lado do Atlântico no idioma falado em terras portuguesas. Mas isso não é novidade.
‘Desde finais dos anos 1970 e princípios dos anos 1980, houve uma aquisição de brasileirismos gigantesca’, diz Venâncio, autor do livro O Português à Descoberta do Brasileiro.
Agora, há um fenômeno novo em curso, que envolve principalmente as crianças e adolescentes. ‘Em Portugal, eles veem cada vez mais youtubers brasileiros, às vezes, por muitas horas’, diz Venâncio.
A portuguesa Paula Lourenço é professora de escolas de ensino fundamental em Sintra há 24 anos. Ela dá aulas para crianças entre 9 e 10 anos e diz que o uso de expressões e palavras brasileiras pelos seus alunos é cada vez mais evidente.
‘Neste momento, na escola, tenho um caso de um aluno que fala ‘brasileiro’ apesar de os pais serem portugueses’, conta.
A professora relata que esse aluno começou a ser vítima de uma espécie de bullying, com colegas implicando com a forma como ele fala.
Fonte: © G1 – Globo Mundo
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